
[Resenha] Antes do Brasil se chamar Brasil
Comentário a "Ubirajara", de José de Alencar
A primeira vez que li Ubirajara (1874), em 2015, o matei numa sentada. Comecei de manhã, de tardinha já tinha mastigado tudo. Olha, livraço, uma aventurazona mesmo. Bota tempo bem gasto nisso.
E a primeira coisa interessante de se revisitar um livro já lido, ainda mais a mesma edição lida antes, é deparar com as anotações: eu sublinhava várias palavras anônimas pro meu vocabulário fetal, várias expressões do próprio dialeto indígena que o livro resgata e inclui no leque da língua portuguesa (desta vez, eu tive a vergonha na cara de acompanhar nota por nota do delicioso caderno de notas feito pra ele), além de maneirismos do próprio autor, um estilista antes de tudo. Hoje, não precisei revisitar o dicionário pra quase nada. Ah, o tempo... E o ego então? Fica rejuvenescido!
A história é rápida e não se demora. Na verdade, é mais rápida do que eu lembrava que fosse. Jaguarê sai pela mata ínvia em busca dum nome de guerra que o preceda na memória do seu povo, e acha em Pojucã o seu oponente. Combatem, e o primeiro vence o segundo. Legal. Daí pra frente, o texto se agita com aparições femininas — Araci e Jandira —, invasão à tribo inimiga, embates épicos, lutas, feitos viris e toda essa coisa memorável. Acontece que Alencar, naquela ânsia de nacionalismo do nosso Romantismo oitocentista, esboça o melhor do brasileiro original em Jaguarê: ele é forte, no físico e na ideia, é complacente, mas também feroz, e é antes de tudo um apaixonado pela vida e sua gente. A própria honra encarnada.
Da trilogia indigenista inteira — da qual Ubirajara é justamente o primeiro irmão por consideração cronológica, visto que de nascimento mesmo é o último —, só fui com a cara deste. Iracema (1865) soa que nem história de índio pra agradar branco da época, uma ladainha melosa sem tamanho que não consegui terminar apesar da boa vontade. O Guarani (1857) também, a despeito do tempo que vive empoleirado na crista da nossa cultura, da nossa música, do nosso cinema e da nossa TV, não aparenta ser um romance menos safado na proposta de transa sussurrosa inter-racial. Abandonei já exausto perto da página 100. É que esses dois últimos carregam no assunto a crônica do indígena no seu primeiro contato com o branco invasor (em Iracema) e, depois, esse mesmo indígena já incluso no sistema colonial (n’O Guarani). Ubirajara, não. Neste, a história se ambienta num Brasil anterior ao elemento europeu, anterior mesmo ao Brasil se chamar Brasil. Possivelmente, por isso gosto tanto, mas não sei se é só.
Agora, levando em conta o peso que o nome do Zé de Alencar tem, e da miudez bibliográfica com que cuidou dos fatos acerca das duas nações descritas — a Araguaia e a Tocantim — e do livro como um todo, é erro crasso assim dizer que Ubirajara é o primeiro épico histórico da nossa literatura? Se não de cronologia, de moral, pelo menos? Que seja. É dos nossos gigantes exemplares de aventura e ficção-histórica, e, pensando bem, isso basta.